O RELACIONAMENTO DO PODER PÚBLICO COM O TERCEIRO SETOR
É sabido que o Poder Público não está aparelhado para atender diretamente e suprir todas as demandas da população, que inegavelmente são sempre crescentes.
Assim, o reconhecimento da necessidade de convidar membros da sociedade civil organizada, entidades de classe e organizações do terceiro setor para atuar junto ao Estado para auxiliá-lo a promover políticas públicas é fundamental.
As organizações do terceiro setor auxiliam o Estado a dar concretude e dinâmica a determinadas políticas públicas. Isso pode ser feito através da participação na etapa de discussão da formulação dessas políticas, na atuação de execução de atividades propriamente ditas ou no atendimento de demandas quando o poder público não tem expertise ou não faz sentido aumentar a sua estrutura para realizar uma tarefa.
O relacionamento do Poder Público com o terceiro setor tem aumentado a cada dia. Somente para se ter uma idéia, em 2014 foram dispendidos pelos Municípios do Estado de São Paulo nada menos do que R$ 7.257.533.944,08[1] (entre recursos de origem federal, estadual e municipal), com a celebração de contratos de gestão, convênios, termos de parceria, termo de colaboração e fomento e com o repasse a título de auxilio, contribuição e subvenção.
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¹Dados obtidos no site www.tce.sp.gov.br (transparência/portal de transparência municipal) – Esse valor representa cerca de 7,64% do total arrecadado pelos Municípios em 2014 – R$ 94.997.400.686,57
Os termos “terceiro setor”, “organizações não governamentais (ONGs)” e “movimentos sociais” costumam ser confundidos na literatura, nas mídias e no senso comum. Na realidade, é difícil realizar estas definições sem esbarrar nos limites de um e de outro, vez que o terceiro setor pode se organizar das mais variadas formas: organizações voluntárias, ONGs, congregações, cooperativas, organizações de ajuda-mútua etc.
Assim, genericamente, podemos entender o terceiro setor como sendo as entidades sem fins lucrativos que tem expressão e atuação nas mais variadas áreas sociais, havendo diversas maneiras do Poder Público se relacionar com essas entidades, conforme relacionaremos a seguir.
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Contrato de Gestão
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É o ajuste celebrado entre Poder Público e as entidades privadas qualificadas como organizações sociais² com vistas à formação de parceira entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, cultura, saúde e preservação do meio ambiente, conforme se apreende da Lei nº 9.637/98 (art. 1º e art. 5º).
São fixadas metas de desempenho na consecução dos objetivos a serem atingidos e como serão aferidos os resultados, devendo o contrato de gestão ser uma ferramenta que vai orientar toda a parceria e servir como fonte de subsídios para os responsáveis pelo controle.
Na realidade o contrato de gestão é um instrumento de implementação, supervisão e avaliação de políticas públicas, de forma descentralizada, racionalizada e autônoma, na medida em que vincula recursos ao atingimento de finalidades públicas.
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²Organização Social é uma qualificação conferida a uma entidade civil sem fins lucrativos, que a habilita a manter um relacionamento de fomento e parceria com o Poder Público na execução de atividades em áreas de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico,proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde.Não se trata de categoria jurídica e sim de titulação concedida pelo governo à associação ou fundação civil criada por particulares com base nos dispositivos do Código Civil.
Como o próprio título já denota, o contrato de gestão tem finalidade de gerir (algo amplo dentro do universo de atuação) não permitindo que as atividades sejam fragmentadas. Por exemplo: se o Poder Público celebra contrato de gestão com uma OS para gerir um hospital (hipótese muito utilizada atualmente pelo Estado de São Paulo), normalmente tal entidade ficará responsável (conforme plano de trabalho) pelo atendimento pleno nesse estabelecimento, fornecendo pessoal, materiais, equipamentos, tendo que atingir metas de quantidade e qualidade de atendimento.
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Termo de Parceria
Assim como o contrato de gestão no âmbito das organizações sociais, o termo de parceria constitui uma ferramenta fundamental na associação do poder público com as Oscips.[3] É nesse documento que deverão constar os objetivos, indicadores, metas e demais informações referentes ao planejamento e que servirão de subsídios para as atividades de controle[4].
Previsto no art. 9° da Lei federal nº 9.790/99, o termo de parceria é um “instrumento passível de ser firmado entre o Poder Público e as entidades qualificadas como Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público destinado à formação de vínculo de cooperação entre as partes, para o fomento e a execução das atividades de interesse público previstas no art. 3º desta Lei.”
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[3]Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) é uma qualificação instituída pela Lei nº 9.790, de 23 de março 1999, regulamentada pelo Decreto nº 3.100, de 30 de junho 1999, conferida pelo Ministro da Justiça à associação ou fundação civil sem fins lucrativos, criada por particulares, cujos objetivos estatutários atendam a finalidades de natureza social, dentre as quais promover a assistência social, cultura e conservação do patrimônio histórico e artístico, educação gratuita, saúde gratuita, segurança alimentar e nutricional ou proteção e conservação do meio ambiente. As Oscips executam projetos pontuais e específicos, atividades de interesse público previstas na lei.
[4]Ao analisar o conceito de Oscip, percebem-se semelhanças entre essas entidades com as Organizações Sociais. Entretanto, apesar de algumas peculiaridades jurídicas em comum, alguns pontos de distinção são relevantes e serão descritos a seguir.
– O âmbito de atuação de uma Oscip pode ser considerado como ponto de distinção entre essas instituições e as OS pois além das atividades permitidas às OS, o objeto das atividades das Oscips compreendem também finalidades de benemerência social, podendo atuar de maneira conjugada com uma organização governamental, desde que a contratação entre as partes seja efetuada mediante o termo de parceria.
– Em comparação com as Organizações Sociais as Oscips são entidades privadas que atuam em áreas típicas do setor público, com o auxílio do Poder Público, e as Organizações Sociais são entidades privadas sem fins lucrativos, criadas à feição do Poder Público, para gerir patrimônio que continuará sendo público.
A principal característica do termo de parceria é a preocupação com a eficácia ou resultado em contrapartida à eficiência ou método. Outra característica importante é que a celebração do referido termo deve ser sempre precedida de um concurso de projetos, dando assim maior lisura e transparência na escolha da entidade.
O instrumento deverá explicitar os objetivos, indicadores, definição de metas de desempenho e responsabilidades dos seus signatários, assim como os procedimentos de avaliação dos resultados alcançados.
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Convênio
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Os convênios administrativos são acordos firmados por entidades públicas de qualquer espécie, ou entre estas e organizações particulares, para a realização de objetivos de interesse comum. Convênio é acordo, mas não é contrato. No contrato as partes têm interesses diversos e opostos; no convênio os partícipes têm interesses comuns e coincidentes.
Por outras palavras, no contrato há sempre duas partes. Uma delas pretende receber o objeto do ajuste e a outra pretende a contraprestação correspondente, diversamente do que ocorre no convênio, em que não há partes, mas unicamente partícipes com as mesmas pretensões.
Atualmente[5], grande parte do relacionamento do poder público com o terceiro setor ocorre através de convênios. Isso se dá após a apresentação de um plano de trabalho em que as entidades normalmente recebem recursos financeiros ou outros benefícios do poder público e em contrapartida disponibilizam sua expertise realizando o objeto do convênio, apresentando ao final a devida prestação de contas dos recursos recebidos.
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[5] Somente para se ter uma idéia da importância dos convênios, em 2014, do montante total repassado ao terceiro setor, R$ 3.569.537.636,35 foram através de convênios.
Contudo, é importante ressaltar que a partir de 1º de janeiro de 2017, entra em vigor para os Municípios o chamado Marco Regulatório do Terceiro Setor (Lei nº 13.019/14). Em seu artigo 84-A, a lei determina que: “A partir da vigência desta Lei, somente serão celebrados convênios nas hipóteses do parágrafo único do art. 84”[6].
Verifica-se, portanto, que com essa nova legislação, somente serão celebrados convênios entre os entes federados (União, Estado e Municípios) e com as entidades privadas quando tratar-se de objeto relacionado ao Sistema Único de Saúde.
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Auxilio, contribuição e subvenção
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A noção de auxílio, tem o sentido de assistência, socorro, amparo, ajuda e subsídio, concedido pelo Poder Público a entidades privadas, para fins variados, sobretudo com objetivos altruísticos.
O conceito de auxílio, presente no artigo 12, § 6º, da Lei Federal nº 4.320/64, se encontra associado às chamadas Transferências de Capital, que são, segundo o referido dispositivo legal, “dotações para investimentos ou inversões financeiras que outras pessoas de direito público ou privado devam realizar, independentemente de contraprestação direta em bens e serviços.”
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[6] Art. 84. Não se aplica às parcerias regidas por esta Lei o disposto na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.
Parágrafo único. São regidos pelo art. 116 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, convênios:
I – entre entes federados ou pessoas jurídicas a eles vinculadas;
II – decorrentes da aplicação do disposto no inciso IV do art. 3º.
Art. 3º. Não se aplicam as exigências desta Lei:
(…)
IV – aos convênios e contratos celebrados com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos nos termos do § 1º do art. 199 da Constituição Federal;
Já a contribuição é entendida na linguagem jurídica em geral como um subsídio de caráter moral, social, científico ou literário, para consecução de alguma obra útil.
As contribuições, conforme a Lei nº 4320/64, podem estar associadas tanto às transferências correntes como às transferências de capital (art. 12, §s 2º e 6º) e não correspondem a uma contraprestação direta em bens ou serviços.
Finalmente, a subvenção é uma contribuição pecuniária concedida permanentemente ou eventualmente, destinada a auxílio ou em favor de uma pessoa, ou de uma instituição, para que se mantenha, ou para que execute os serviços ou obras pertinentes a seu objeto.
O artigo 12, §s 2º e 3º, da Lei Federal n. 4.320/64, define que as contribuições e as subvenções são vinculadas a noção de Transferências Correntes, destinadas a despesas de custeio da entidade.
No mesmo art. 12, § 3º, define-se que são “subvenções sociais, as que se destinem a instituições públicas ou privadas de caráter assistencial ou cultural, sem finalidade lucrativa”.
No art.16, temos a indicação de que a concessão de subvenções sociais visará, fundamentalmente e nos limites das possibilidades financeiras, “à prestação de serviços essenciais de assistência social, médica e educacional”, sobretudo quando “a suplementação de recursos de origem privada, aplicados a esses objetivos, revelar-se mais econômica”.
Acrescenta ainda que “o valor das subvenções sociais, sempre que possível, será calculado com base em unidades de serviço efetivamente prestados ou postos à disposição dos interessados, obedecidos os padrões mínimos de eficiência previamente fixados.”
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Termos de colaboração e de fomento
A Lei nº 13.019/14, buscando obter inovação na gestão pública, valorização do trabalho realizado pelas Organizações da Sociedade Civil (OSCs), eficiência na implementação de projetos e transparência na aplicação de recursos públicos criou dois novos instrumentos jurídicos para as relações de parceria entre o Poder Público e as OSCs: os Termos de Fomento e de Colaboração.
A diferença entre ambos os institutos é relativamente simples. O termo de colaboração destina-se à seleção de entidades da sociedade civil para participação em projetos propostos pela Administração Pública (art. 16 da Lei 13.019/14). Já o termo de fomento serve à escolha de entidades privadas para projetos que tenham sido idealizados pela própria sociedade civil (art. 17 da mesma lei). Como se vislumbra, o rótulo do instrumento varia apenas para indicar o sujeito responsável pela iniciativa da parceria.
Diversas foram as inovações trazidas pelo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, que já está em vigor na esfera federal e estadual e como já dissemos, entrará em vigor para os Municípios em 1º de janeiro de 2017 (art. 88 da Lei nº 13.019/14). Nesse momento, terão que se adaptar ao novo conceito de parceria, que visa muito mais a política de resultados e o atingimento de metas, buscando a efetividade na aplicação dos recursos envolvidos nessas parcerias.
Explicitadas as possíveis formas de relacionamento do terceiro setor com o Poder Público, cumpre-nos ressaltar a necessidade de controle e acompanhamento constantes dessas parcerias.
Muito se tem questionado a respeito do controle externo dos recursos repassados pelo Poder Público a entidades do terceiro setor. As críticas aumentam na mesma proporção que desvios e má aplicação desses recursos são objeto de denúncias e notícias veiculadas na mídia.
Entretanto, a atuação da sociedade organizada em associações do terceiro setor sérias e comprometidas com a execução de atividades voltadas ao benefício social, não deve ser sacrificada pela atitude irregular de algumas instituições oportunistas e desonestas. O Estado deve desenvolver formas de controle por meio das quais sejam coibidas as ilegalidades e os danos evitados, sem,entretanto, tolher as iniciativas de parcerias como o excesso de regras e regulamentos.
Nesse contexto, os mecanismos de transferência de recursos devem ser elaborados de maneira a possibilitar maior transparência e controle por parte dos órgãos repassadores como forma de se evitar irregularidades na aplicação desses valores.
Com relação ao controle externo, a legislação brasileira determina que as instituições do terceiro setor em parceria com o Estado sejam submetidas à fiscalização do Ministério Público,no exercício de suas competências legais, e ao controle externo do Poder Legislativo, que o exercerá com o auxílio do Tribunal de Contas.
Parcerias com entidades do terceiro setor são cruciais para a implementação de políticas públicas, já que muitas vezes essas entidades possuem conhecimento, capacidades e acesso aos cidadãos que governos não têm. Relacionamentos bem-sucedidos geram inegavelmente benefícios aos cidadãos que podem usufruir de serviços de qualidade.
É imperiosa a conclusão da importância do terceiro setor na implementação de políticas públicas, vez que os mais diversos tipos de organização podem desempenhar um papel fundamental junto às comunidades mais carentes quando há falta do Estado, pelo conhecimento e experiência acumulados.
No entanto, para que essas parcerias sejam mais efetivas, é necessário que haja, além da convergência de missão e valores consentâneos, condições adequadas de trabalho e efetivo controle na aplicação dos recursos, visando sempre maior eficácia, eficiência e efetividade estatal.
Flávia Maria Palavéri. Advogada graduada pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Processual Civil pela mesma universidade. Professora assistente na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP – área de Direito Civil (1996 a 2001). Sócia do escritório Miranda Rodriguez e Palavéri Advogados.